05/02/10





«yo digo: "a la de tres empezaré a correr" / pero olvido que no sé contar.»
[Nacho Vegas]

o silêncio é uma impossibilidade metafísica. ecoará sempre algo na tua cabeça. uma palavra, uma lágrima. se tudo correr bem, uma canção. se tudo correr mal, um poema. foges, escondes-te, pensas que te calas e tudo se resolve, mas a ausência de ruído não é silêncio. é só a ausência de ruído. o rio mais limpo terá sempre margens de lama. procuro nas entrelinhas a melhor maneira de acabar com este quasi blogue. mas se não há boas maneiras de morrer, não há boas maneiras de matar. mesmo que seja um texto. ninguém mata o silêncio, se ele não existe. não sonhamos em grande, nós é que somos pequenos. miseravelmente ínfimos. queria escrever a história de um poema que se suicidou, mas a verdade é que nem sequer chegou a nascer. e aqui jaz, sem que ninguém conte a história do seu suicídio.


[rebekah del rio, llorando. / fotografia mf2004]


23/01/10



o recluso (palavra mais feia) tende a ver tudo como uma prisão (palavra mais linda). eu tenho que fazer menos parêntesis (não é fácil). vou tentar (não prometo nada). o recluso tende a ver como uma prisão. a casa, o quarto, as ruas, as lojas, o carro, a cama. se a metáfora da prisão existe em todos os lugares, a derradeira prisão é aquela que o corpo encerra. se darwin nos fez ver que vivemos numa prisão global chamada natureza, weismann explicou-nos que a prisão é individual (o ouriquense explica). somos a mais inexpugnável das prisões. mendigamos inutilmente migalhas de liberdade aqui e ali, e nunca no sítio certo. o segredo é viver bem na prisão. mas numa prisão não se vive, subvive-se. procuro uma morte digna, but there's no such thing (por que é que escrevi em inglês?). a morte é feia, brutal, asquerosa e, ainda pior, extremamente aborrecida. não há boas maneiras de morrer; já experimentei quase todas. a vida não é mais do que um eufemismo para morte lenta. o meu corpo jaz há anos, mas insiste em respirar.

[neil young, see the sky about to rain.]

04/12/09



«there's a lot of doctors tell me / that i'd better start slowing down /
but there's more old drunks than there are old doctors / so i guess we'd better have another round.»
[
Willie Nelson - i gotta get drunk]


o macaco esteve mais de um mês sem beber. nas reuniões de alcoólicos anónimos teria direito a uma medalha, mas na prisão as coisas dão sempre para o torto. sobra a insónia e a ressaca-rolhas. o macaco bebeu mas sem excesso, o que devia ser punido por lei. beber sem ficar bêbedo é como foder sem ejacular. há duas regras fundamentais no comportamento de abstinência. não bebo em casa e levo sempre o carro. e vou-me aguentando, como provam as três cervejas que jazem há meses no fundo do frigorífico. o segredo é trocar uns vícios pelos outros, e manter o corpo ocupado. um drogado há-de ser sempre um drogado, por muita metadona que. os pulp diziam que «we dance, and drink, and screw / cause there's nothing else to do.». a vida na prisão é mais ou menos isto só que ao contrário. e é verdade que não há mais nada fazer. a vida fora da prisão era uma merda mas a verdade é que tenho saudades dela. mas vou-me aguentando, como provam as duas cervejas que jazem há meses no fundo do frigorífico.





21/11/09






o macaco também anda de comboio. o comboio é apenas outra prisão. e as viagens são sempre de regresso, nunca a casa. a estação alinha os condenados; somos todos judeus com bilhete na mão. murphy ensinou-nos que a nossa carruagem é sempre a que fica mais longe. aos encontrões lá nos encontramos. mind the gap. pouca terra - que mentira. muita, demasiada terra. todos a bordo? quantos são? olhar em redor, conhecer os companheiros de cela. lá ao fundo um grupo de tropas, cinco ou seis, no máximo. pagam quase nada, com o desconto, os cabrões. regressam de licença de fim de semana, depois de dois dias inúteis em casa. têm casa, os cabrões. uma ou duas famílias pouco numerosas. pai-mãe-e-filho. crianças. se há coisa que os condenados ao comboio sabem é que mais de duas crianças por carruagem asseguram cefaleias. não parece haver perigo, mas nunca fiando. têm cara de santinhos, aquele olhar de criança, arregalado pela surpresa e descoberta, os cabrões. um casal de imigrantes. leste, de certeza. ucrânia, suponho. ele segura-lhe a mão, ela encosta a cabeça. ele segreda-lhe não sei o quê. ela sorri. estão apaixonados, os cabrões. dois bancos à frente, de frente, a única miúda gira da carruagem. morena, olhos verdes que apanham os meus em flagrante. batem em retirada com vergonha, os cabrões. ao meu lado, uma senhora que reza. terço na mão, saca de renda com hortaliças entre os pés. todos a bordo. para sul, rumo ao oriente. a pena é de pouco mais de duas horas, mas o tempo nos comboios (como em qualquer prisão) é diferente do tempo lá fora. são pouco mais de quinze minutos para tentar olhar para a miúda gira. uma eternidade se aquelas crianças desatarem a berrar. faço um sudoku e cruzo as palavras ao mesmo tempo que tento cruzar o olhar com a miúda gira. grande desordem com quatro letras. como se chamará? alumínio s.q.. vinte, vinte e poucos? milímetro (abrev.). deve ser estudante e foi a casa de fim de semana. irmã da mãe ou do pai, três letras. aposto que estuda artes, tem estilo de miúda das artes. as palavras cruzadas nem dão luta. ela sorriu(-me?). eh lá, acho que ela me sorriu. coro e engasgo-me em surdina. fantasio que ela me deseja. foi à casa de banho de propósito para passar por mim. finjo não olhar. deseja-me, de certeza. troveja. o granizo raspa as janelas da composição - termo técnico. a senhora das hortaliças reza mais alto. deve ser para ele a ouvir bem, por causa do barulho dos trovões. ou então santa bárbara já tem problemas de ouvido. usará aparelho? no oriente ganho coragem e convido-a para um café. ou sigo-a no metro. não sejas parvo, convida-a para um café. respiro fundo: no oriente convido-a para um café. que tens a perder? cinquenta cêntimos? faço outro sudoku. só com zeros, para ser mais fácil. leio um livro. repenso uma e outra vez a abordagem. estou preso há demasiado tempo, velho, enferrujado. o ridículo já não me importa. vais lá, perguntas se quer tomar um café e já está. ela diz que não e tu voltas à cela. lês o livro, bebes o café sozinho. perguntas-lhe se quer boleia de metro. ela ri-se. partilham um gelado à chuva. o livro aborrece. tiro umas notas para uma ideia que nunca hei-de concretizar. rabisco às escondidas um saco com nabiças e rabanetes. a caneta deixou de escrever. leio outra vez. invento uma história que nunca hei-de contar aos netos no jantar de natal. o mau tempo não passa. nunca mais chegamos à estação boa. penso no bukowski. por que é que penso no bukowski? lembro-me do salvatore schillaci. não sei porquê. não me lembro do baggio ter feito um jogo mau em toda a carreira. nem um, o cabrão. a chuva parou. o comboio também. chegámos ao oriente. a miúda gira saiu em vila franca de xira.

[foto de mystery train, jim jarmusch. / train song, nick cave.]

10/11/09

delirium tremens


o macaco deixou de beber há três semanas. a sobriedade não é tão má como parece. é muito pior. um estado de falso coma induzido por omissão. a ignorância transformada num pesado vulto mascarado de consciência. a sobriedade engana, ilude. mais do que a embriaguez. um ébrio é iludido por definição, mas ao menos sabe ao que vai. a sobriedade, uma pesada agonia que torna mais nítida a percepção de quão errados andamos todos, todos os dias. não há registo de que nada de bom tenha nascido do gérmen da sobriedade. um emaranhado de frases mal alinhadas apenas para dizer que estar sóbrio é uma merda.

refoda-se.
faltam as palavras. sobram as palavras. resta a voz, que há-de ser eterna. já todas as elegias foram feitas ao antónio sérgio. já todos explicaram que foi o antónio sérgio que nos ensinou a ouvir música. mas não foi só isso, como se isso pudesse ser só. o antónio sérgio ensinou-nos a ouvir música, a descobrir música, a partilhar música, a sentir música. ensinou-nos que a música se conjuga com outros verbos. um mestre, que faz o que os mestres sabem e nos ensinam a pensar. música e tudo o resto. se o segredo é think outside the box, o antónio sérgio está lá fora, muito fora, muito à frente. e nós continuaremos aqui fechados a espreitá-lo. ou pelo menos a ouvi-lo uivar ao longe.

01/11/09

foda-se

o macaco está triste.


30/10/09


«well you dream of blondes and you dream of beer / and life gets terribly stale
it's dead in the morgue but it's deader in here / there's no night out in the jail




[there's no night out in the jail, nick cave / fotograma de down by law, jim jarmusch]

27/10/09

em sobressalto vejo no escuro a minha insónia interrompida. chupa-la picha!, gritava aquilo que eu diria ser um homem (a julgar pelo timbre), palopiano (a julgar pelo sotaque), alcoolizado (a julgar pelo arrastar da palatização que comeu o agá). no relógio, quatro horas, marcadas num vermelho desfocado pelas remelas. horas que marcam o fecho do estabelecimento que dá guarida às nobres almas em busca de amor pago, sito a poucos metros da janela do quarto onde repouso os restos mortais, encarpados à retaguarda de mais um dia assim, assim. não é fácil, o aluguer do corpo nos subúrbios de lisboa. chupa-la picha!, insiste ele, carregando agora no i. adivinho um amigo junto ao artista, a julgar pelos risos miudinhos, que disfarçam a falta de paciência que o amigo menos bêbedo tenta esconder nestas ocasiões. um pouco mais longe, no que deduzo ser a porta do referido estabelecimento, as conversas cruzam-se, sem prioridade definida, tornando imperceptível o seu conteúdo, mas todas elas ignorando o pedido altruísta cujo eco parece prolongar-se para diligentemente perscrutar as vontades de todos os ouvintes, um(a) de cada vez. este homem que grita não pede para si. a bondade de um homem vê-se nestes momentos. e esta moleza de coração não me deixa indiferente. indiferente ao frio, arrasto-me à varanda para tomar conta da ocorrência a olhos bem vistos. acendo um contemplativo cigarro e partilho o fumo com o poste da luz. chego tarde à cena da noite. o nosso artista afasta-se, resignado, braço dado com o amigo que lhe ampara a queda e a ressaca. à porta do bar, as quatro putas partilham um táxi, como todas as santas noites. o dono do bar (a julgar pela brilhantina) e o porteiro (a julgar pelo cabedal que lhe vestia os ossos) rumam ao bmw branco do primeiro (a julgar pelo bmw), com aquela cara de poucos amigos que têm as pessoas que têm poucos amigos. dois polícias distraem-se mutuamente com uma anedota futebolística na direcção da esquadra, dez metros ao lado. os meus restos, ligeiramente mais mortos, voltam para dentro. com o fechar da persiana calo o grito clemencioso que me acompanharia nos sonhos se eu os escolhesse. se o pedido foi atendido? adormecerá connosco para sempre a dúvida. do taxista jamais teremos notícias, mas a julgar pela pouca felicidade com que mais uma noite de despediu dos subúrbios de lisboa, ela pelos vistos não chupou.

lições do tédio #1

na tua interioridade julgas-te original e criativo. mas és apenas sozinho.

26/10/09

não dou erros ortográficos. o meu problema são os açentos.

o padre insone

farto de não dormir, foi pregar olho para outra freguesia.


macaco na prisão
: um blogue sem o design da menina limão.

22/10/09

exegese *

«amai-vos uns aos outros» foi a forma que ele arranjou para dizer: vão-se foder.



a sério, não é nada de especial. toda a gente faz anos.

21/10/09




dão-me os parabéns como se eu tivesse algum mérito na aleatoriedade do universo. como se fizesse sentido medir o tempo e celebrar quando o número de movimentos de translação que presenciamos atinge um número inteiro. o sol seguirá ali no meio, quietinho, imperturbável com a nossa coexistência. faz ele bem. e nós às voltas, a tentar não cair depois de tontos. e ainda brindamos, como se fosse preciso uma desculpa para beber. vejo-me à porta do clube dos 27, onde não faço grande questão de entrar mas já cumpri metade dos requisitos. não tenho especial amor pela vida, mas a morte deve ser ainda mais aborrecida. e vamos ficando por aqui e agora, respirando neste constante (des)equilíbrio entre passado e futuro. porque o passado é uma história sem futuro. e o futuro? o futuro é uma história muito mal contada. e voltamos a brindar, como fosse preciso uma desculpa para beber mais.

[good good day, nick cave & the bad seeds. / fotograma de down by law, jim jarmusch.]

20/10/09

errata: onde se lê errata deverá ler-se é rata.

19/10/09


a dialéctica de (re)escrever um blogue basicamente resume-se nisto

good old days vs same old shit

ânimo levezinho

começo este blogue com as mesmas expectativas que tinha para o casamento da minha irmã: não lhe dou duas semanas.

hipótese nula

confesso: a minha religião é zeroteísta.

uma coisa perigosa

n'os condenados de shawshank, a personagem do morgan freeman avisa-nos que a esperança é uma coisa perigosa. mais do que a esperança, perigoso é o optimismo. a esperança implica o passar do tempo, e o tempo cura tudo. se não cura, pelo menos mata. menos mal. não podemos tirar a espera da esperança, e esperamos que corra tudo bem. pelo menos esperamos, menos mal. já o optimismo é mais imediato. o optimismo está a meio passo da fé, a mais perigosa das irracionalidades. um optimista, mais do que confiar, acredita. crê que é capaz, sem se dar conta da desambiguação semântica que o crer encerra. crê como quem palpita. crer não é crer. crer é querer acreditar. todos querem ser optimistas porque o optimismo ilude (e isso é útil, não nos iludamos). os governantes dizem-se optimistas, os treinadores de futebol estão sempre optimistas, os mercados querem estar optimistas. todos têm um produto a vender, e a fé do optimismo vende melhor que nada. os consumidores, cegos, querem ter um olho para ser os reis do optimismo. a esperança é mais inócua. eu espero, tu esperas, nós - desesperados - esperamos. e o tempo passa. não é mau. espero, sento-me, e faço um manguito ao optimismo.
o optimismo é uma coisa perigosa. que o digam os gajos da armada invencível.

01/10/09




já são dez para as seis da manhã
e há mais um imbecil a pensar
este mundo não foi feito para a gente entender

nem por isso eu deixo de o tentar


venho libertar o macaco
que ele anda um pouco farto da repressão

enlouquece aos pulos na jaula

quase já nem fala

tirem o macaco da prisão


todo o vento é vento a favor
não entendas já

quando soprar dir-te-á

a favor do quê

prometo-te a mudança e só a mudança

meu amor, não entendas mal

a mudança é

nunca vai mudar

vais mudar o quê?


o melhor que o mundo leu
o melhor que ele escreveu

o melhor dos melhores

a pior das mulheres

o motivo que referes

é um passatempo vivo


cem mulheres e eu na cama é febre

um amor que não engana é febre


venho libertar o macaco
que ele anda um pouco farto da repressão

enlouquece aos pulos na jaula

quase já nem fala

tirem o macaco da prisão


tirem o macaco da prisão.


[tirem o macaco da prisão, manel cruz. / fotograma de down by law, jim jarmusch.]


doing time