27/10/09

em sobressalto vejo no escuro a minha insónia interrompida. chupa-la picha!, gritava aquilo que eu diria ser um homem (a julgar pelo timbre), palopiano (a julgar pelo sotaque), alcoolizado (a julgar pelo arrastar da palatização que comeu o agá). no relógio, quatro horas, marcadas num vermelho desfocado pelas remelas. horas que marcam o fecho do estabelecimento que dá guarida às nobres almas em busca de amor pago, sito a poucos metros da janela do quarto onde repouso os restos mortais, encarpados à retaguarda de mais um dia assim, assim. não é fácil, o aluguer do corpo nos subúrbios de lisboa. chupa-la picha!, insiste ele, carregando agora no i. adivinho um amigo junto ao artista, a julgar pelos risos miudinhos, que disfarçam a falta de paciência que o amigo menos bêbedo tenta esconder nestas ocasiões. um pouco mais longe, no que deduzo ser a porta do referido estabelecimento, as conversas cruzam-se, sem prioridade definida, tornando imperceptível o seu conteúdo, mas todas elas ignorando o pedido altruísta cujo eco parece prolongar-se para diligentemente perscrutar as vontades de todos os ouvintes, um(a) de cada vez. este homem que grita não pede para si. a bondade de um homem vê-se nestes momentos. e esta moleza de coração não me deixa indiferente. indiferente ao frio, arrasto-me à varanda para tomar conta da ocorrência a olhos bem vistos. acendo um contemplativo cigarro e partilho o fumo com o poste da luz. chego tarde à cena da noite. o nosso artista afasta-se, resignado, braço dado com o amigo que lhe ampara a queda e a ressaca. à porta do bar, as quatro putas partilham um táxi, como todas as santas noites. o dono do bar (a julgar pela brilhantina) e o porteiro (a julgar pelo cabedal que lhe vestia os ossos) rumam ao bmw branco do primeiro (a julgar pelo bmw), com aquela cara de poucos amigos que têm as pessoas que têm poucos amigos. dois polícias distraem-se mutuamente com uma anedota futebolística na direcção da esquadra, dez metros ao lado. os meus restos, ligeiramente mais mortos, voltam para dentro. com o fechar da persiana calo o grito clemencioso que me acompanharia nos sonhos se eu os escolhesse. se o pedido foi atendido? adormecerá connosco para sempre a dúvida. do taxista jamais teremos notícias, mas a julgar pela pouca felicidade com que mais uma noite de despediu dos subúrbios de lisboa, ela pelos vistos não chupou.

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