21/11/09






o macaco também anda de comboio. o comboio é apenas outra prisão. e as viagens são sempre de regresso, nunca a casa. a estação alinha os condenados; somos todos judeus com bilhete na mão. murphy ensinou-nos que a nossa carruagem é sempre a que fica mais longe. aos encontrões lá nos encontramos. mind the gap. pouca terra - que mentira. muita, demasiada terra. todos a bordo? quantos são? olhar em redor, conhecer os companheiros de cela. lá ao fundo um grupo de tropas, cinco ou seis, no máximo. pagam quase nada, com o desconto, os cabrões. regressam de licença de fim de semana, depois de dois dias inúteis em casa. têm casa, os cabrões. uma ou duas famílias pouco numerosas. pai-mãe-e-filho. crianças. se há coisa que os condenados ao comboio sabem é que mais de duas crianças por carruagem asseguram cefaleias. não parece haver perigo, mas nunca fiando. têm cara de santinhos, aquele olhar de criança, arregalado pela surpresa e descoberta, os cabrões. um casal de imigrantes. leste, de certeza. ucrânia, suponho. ele segura-lhe a mão, ela encosta a cabeça. ele segreda-lhe não sei o quê. ela sorri. estão apaixonados, os cabrões. dois bancos à frente, de frente, a única miúda gira da carruagem. morena, olhos verdes que apanham os meus em flagrante. batem em retirada com vergonha, os cabrões. ao meu lado, uma senhora que reza. terço na mão, saca de renda com hortaliças entre os pés. todos a bordo. para sul, rumo ao oriente. a pena é de pouco mais de duas horas, mas o tempo nos comboios (como em qualquer prisão) é diferente do tempo lá fora. são pouco mais de quinze minutos para tentar olhar para a miúda gira. uma eternidade se aquelas crianças desatarem a berrar. faço um sudoku e cruzo as palavras ao mesmo tempo que tento cruzar o olhar com a miúda gira. grande desordem com quatro letras. como se chamará? alumínio s.q.. vinte, vinte e poucos? milímetro (abrev.). deve ser estudante e foi a casa de fim de semana. irmã da mãe ou do pai, três letras. aposto que estuda artes, tem estilo de miúda das artes. as palavras cruzadas nem dão luta. ela sorriu(-me?). eh lá, acho que ela me sorriu. coro e engasgo-me em surdina. fantasio que ela me deseja. foi à casa de banho de propósito para passar por mim. finjo não olhar. deseja-me, de certeza. troveja. o granizo raspa as janelas da composição - termo técnico. a senhora das hortaliças reza mais alto. deve ser para ele a ouvir bem, por causa do barulho dos trovões. ou então santa bárbara já tem problemas de ouvido. usará aparelho? no oriente ganho coragem e convido-a para um café. ou sigo-a no metro. não sejas parvo, convida-a para um café. respiro fundo: no oriente convido-a para um café. que tens a perder? cinquenta cêntimos? faço outro sudoku. só com zeros, para ser mais fácil. leio um livro. repenso uma e outra vez a abordagem. estou preso há demasiado tempo, velho, enferrujado. o ridículo já não me importa. vais lá, perguntas se quer tomar um café e já está. ela diz que não e tu voltas à cela. lês o livro, bebes o café sozinho. perguntas-lhe se quer boleia de metro. ela ri-se. partilham um gelado à chuva. o livro aborrece. tiro umas notas para uma ideia que nunca hei-de concretizar. rabisco às escondidas um saco com nabiças e rabanetes. a caneta deixou de escrever. leio outra vez. invento uma história que nunca hei-de contar aos netos no jantar de natal. o mau tempo não passa. nunca mais chegamos à estação boa. penso no bukowski. por que é que penso no bukowski? lembro-me do salvatore schillaci. não sei porquê. não me lembro do baggio ter feito um jogo mau em toda a carreira. nem um, o cabrão. a chuva parou. o comboio também. chegámos ao oriente. a miúda gira saiu em vila franca de xira.

[foto de mystery train, jim jarmusch. / train song, nick cave.]

10/11/09

delirium tremens


o macaco deixou de beber há três semanas. a sobriedade não é tão má como parece. é muito pior. um estado de falso coma induzido por omissão. a ignorância transformada num pesado vulto mascarado de consciência. a sobriedade engana, ilude. mais do que a embriaguez. um ébrio é iludido por definição, mas ao menos sabe ao que vai. a sobriedade, uma pesada agonia que torna mais nítida a percepção de quão errados andamos todos, todos os dias. não há registo de que nada de bom tenha nascido do gérmen da sobriedade. um emaranhado de frases mal alinhadas apenas para dizer que estar sóbrio é uma merda.

refoda-se.
faltam as palavras. sobram as palavras. resta a voz, que há-de ser eterna. já todas as elegias foram feitas ao antónio sérgio. já todos explicaram que foi o antónio sérgio que nos ensinou a ouvir música. mas não foi só isso, como se isso pudesse ser só. o antónio sérgio ensinou-nos a ouvir música, a descobrir música, a partilhar música, a sentir música. ensinou-nos que a música se conjuga com outros verbos. um mestre, que faz o que os mestres sabem e nos ensinam a pensar. música e tudo o resto. se o segredo é think outside the box, o antónio sérgio está lá fora, muito fora, muito à frente. e nós continuaremos aqui fechados a espreitá-lo. ou pelo menos a ouvi-lo uivar ao longe.

01/11/09

foda-se

o macaco está triste.


doing time